Roedor de hábitos noturnos, a paca (Cuniculus paca) tem papel importante na alimentação das populações da Amazônia, dependentes da caça e da pesca de subsistência. Recentemente, a diminuição nos números da espécie gerou alarme na comunidade científica e entre os moradores da Reserva de Desenvolvimento Sustentável Amanã, localizada na região do Médio Solimões, na Amazônia Central, estado do Amazonas. Foi pensando nisso que pesquisadores do Instituto Mamirauá propuseram o zoneamento para o manejo sustentável de fauna e realizaram oficinas em comunidades ribeirinhas da reserva para debater a implementação do manejo.
A paca é, junto da queixada e da cutia, importante fonte de proteína para a população local, especialmente nas épocas de cheia, quando os peixes se espalham e a pesca é dificultada. “A paca é emblemática porque é uma das espécies mais apreciadas na região amazônica. Na Reserva de Desenvolvimento Sustentável Amanã, estudos indicaram um declínio na captura das pacas, o que pode colocar em risco a segurança alimentar dos seus moradores”, explica Lísley Lemos, pesquisadora do Grupo de Pesquisa de Ecologia de Vertebrados Terrestres do Instituto Mamirauá.
Os pesquisadores atestaram o decréscimo no número de animais capturados para alimentação através de um monitoramento realizado pelo grupo desde 2002, a partir de dados fornecidos pelos próprios caçadores. Desde 2017, este monitoramento é atualizado com o geoprocessamento das localidades de caça.
“Tendo em vista esse provável declínio na captura de pacas, a necessidade de intervir e a predisposição dos moradores, nós iniciamos uma série de discussões, através de oficinas, para realização do manejo espacial da fauna”, afirma a pesquisadora. Os cientistas realizaram três viagens de 20 dias cada para discutir o modelo proposto junto às comunidades monitoradas e com aquelas que compartilham suas áreas utilizadas para a caça.
As comunidades abordadas estão localizadas na cabeceira do Lago Amanã e na região do Rio Tambaqui, na Reserva de Desenvolvimento Sustentável Amanã: entre elas, a comunidade Bom Jesus do Baré, Boa Esperança, Ubim e Nova Jerusalém do Acará.
Manejo espacial
O zoneamento é realizado para o manejo espacial, modalidade escolhida durante as discussões para o Manejo Experimental de Fauna in situ (realizado na natureza). A modalidade visa estabelecer áreas de resguardo e de manutenção da caça.
Esse modelo foi escolhido pela maior facilidade de aplicação do manejo pelos caçadores. O manejo sustentável do pirarucu, por exemplo, define cotas de extração do animal, parâmetro difícil de ser aplicado no manejo de caça. Isso porque, diferentemente do pescador, o caçador pode sair em busca de algum animal específico, mas voltar com um número variado de espécies.
O manejo especial também já é historicamente praticado pelas populações tradicionais. “Na literatura existem registros de populações indígenas que manejam a espécie no mesmo modelo. Além disso, o modelo já é empregado para categorização dos lagos empregados no manejo de pirarucu na Reserva Amanã, então é mais fácil de ser discutido, de ser entendido pela população e aplicado”, classifica Lísley.
Recentemente, métodos desenvolvidos por pesquisadores do Instituto Mamirauá com o auxílio de comunitários permitiram grandes avanços na coleta de dados biológicos sobre esses animais, como por exemplo informações sobre o período reprodutivo da espécie, essenciais para elaboração do plano de manejo.
Para definir um mapa com as regiões resguardadas, os critérios de seleção foram a incidência de caça na região e a importância das áreas na proteção dos ciclos reprodutivos da espécie, como as cabeceiras de igarapés, locais de abrigo desses animais. Em contrapartida, foram classificadas como áreas de manutenção os locais onde a caça é historicamente praticada pelas populações. No total, foram definidas dez áreas de proteção e onze de manutenção totalizando aproximadamente 80 mil hectares manejados.
Outros aspectos considerados na definição das áreas de manejo e das comunidades abarcadas pelo projeto foram as avaliações de indicativos sociais e a presença de agentes ambientais voluntários, monitoramento local e organizações comunitárias consolidadas nas comunidades.
Manutenção da qualidade de vida
Ao mesmo tempo em que a caça coloca a espécie sob risco, a falta dela também acarreta em um problema grave. O decréscimo do número desses animais na região pode forçar comunitários a caçarem em outras regiões ou a recorrerem a alimentos industrializados. Por isso, a substituição da prática pode resultar em risco para a qualidade da dieta das populações locais. “Além de sair mais caro para populações que já são historicamente desamparadas pelo poder público, há uma maior incidência de doenças e também o impacto de toda uma cadeia porque o produto industrializado gera outros impactos, na saúde dos ecossistemas e dos próprios ribeirinhos”, explica Lísley.
A diminuição da caça de subsistência também pode implicar no aumento da migração dos moradores dessas comunidades para a cidade. A pesquisadora afirma que, enquanto a área de uso de 15 famílias de uma comunidade monitorada na Reserva Amanã é de amplos 100 mil hectares, na cidade essas famílias se alojariam em poucas casas localizadas em bairros periféricos. A mudança resultaria em expansão demográfica urbana e consequente diminuição na qualidade de vida desses moradores.
Por isso, Lísley define como principal objetivo do Grupo de Pesquisa de Ecologia de Vertebrados Terrestres do Instituto Mamirauá, unidade de pesquisa do Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC), entender e definir uma extração máxima sustentável para manter tanto as populações rurais quanto as espécies caçadas fora de risco.
A realização desse projeto foi viabilizada com o apoio da Fundação Gordon e Betty Moore e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
Entrave legal
Sem a salvaguarda legal da caça de subsistência no âmbito federal, o manejo de pacas ainda encontra entraves para a sua correta aplicação. “A nossa ideia é intervir nessas populações com amparo e participação integral para que eles consigam realizar o manejo, mas a gente esbarra nessa questão”, diz.
Atualmente, não existe uma Política Nacional de Fauna e a lei de Proteção à Fauna (5197/1967) não garante a regulamentação da prática da caça de subsistência realizada por populações tradicionais. Somente a Lei de Crime Ambientais (9605/98) afirma não ser crime o abate de um animal quando realizado “em estado de necessidade, para saciar a fome do agente ou de sua família”.
Com informações da assessoria/Foto: Divulgação